Carmen Novo nasceu em 1969, em São Paulo. É artista plástica, fotógrafa e jornalista com especialização em Estudos de Museus de Arte. Vive e trabalha na França, desde 2003, onde nasceram seus filhos Louis e Rafael. Foi assessora de imprensa, repórter na área de Cultura, diretora de Comunicação e expôs no Brasil, Cuba, Portugal e França.
Um mergulho nos labirintos da mente, na angústia e no surpreendente impulso que nos salva deles. Em Tereza é mais rápida que o sol, a narrativa é concisa e aborda as complexidades da identidade multicultural brasileira, o feminino e o emaranhado psicológico que atravessa a personagem Tereza. A narrativa é cerebral e poética, um grande plano sobre uma intimidade universal. A obra se expande para além das palavras, acompanhada por imagens marcantes de um ensaio fotográfico realizado pela autora — fotógrafa, artista plástica, jornalista e professora de Artes Aplicadas na França, onde vive e trabalha há 22 anos.
Tereza é mais rápida que o sol. Talvez porque prefira a sombra. Age no espaço doméstico. Na faxina da casa, vira cadeiras e a vida de ponta cabeça. Em casa, o piscar da secretária eletrônica faz disparar seu coração, o bipe do micro-ondas a convida para o café, os gritos da vizinha a acordam para um cotidiano que não compartilha ainda.
Tereza está em movimento. O carro quebrado não para Tereza. Pelo contrário. Ela anota seu telefone no cheque para o príncipe-mecânico.
Tereza pode desaparecer.
Tereza pode deixar para trás.
Tereza pode voar.
A Tereza que Carmen Novo nos apresenta é estranhamente familiar. Os objetos que a circundam nos remetem a um mundo distante, antes dos celulares, da internet rápida, do dinheiro plástico ou virtual. Mas Tereza nos parece tão próxima, e não é difícil reconhecer-se em sua agitação matinal, no bater de seu coração, no sal de seu corpo.
Carmen Novo é artista plástica e fotógrafa de grande talento. Mantém, também, uma atuação marcante como jornalista cultural. Descubro, agora, que além dessas diferentes formas de atuação na vida cultural que ela tem cultivado com dedicação — e que eu venho acompanhando —, dedica-se, ainda, à literatura.
Este seu texto Tereza é mais rápida que o sol, narrado na terceira pessoa, nos instiga à leitura com esse belo título. O sol é rápido? Como ela, Tereza, supera sua velocidade?
Sabe aquele verso de Chico Buarque — “todo dia ela faz tudo sempre igual”? Tereza, a mulher que conhecemos aqui, também padece do círculo vicioso do cotidiano — não da mesma forma. Pela manhã, o sol a acende. Ansiosa pelas promessas que seu desejo projeta para um novo dia, antecipa-se ao astro. Aí está a rapidez de que fala o título. Seu coração angustiado anseia por uma vida que corresponda aos seus pensamentos.
Sua casa não é um lar. É um lugar onde ela não se reconhece. A novela evidencia o paralelo entre seus trôpegos afazeres domésticos e — depois de interrompê-los sem concluí-los — a sôfrega busca por alguma atividade de lazer que, invariavelmente, não a satisfaz.
Se Tereza é rápida ao despertar, a realidade cotidiana que se descortina logo se revela árida e arrefece seus ímpetos: “Amanhece revolucionando o mundo”, diz o texto; e pouco depois: “Ctrl, Alt, Del para todos os seus sonhos matutinos”.
O texto de Carmen Novo é predominantemente lírico, reservando à personagem Tereza um olhar terno e compreensivo, mas não deixa de lançar algumas tinturas satíricas em direção à solidão patética daquela mulher, o que evita um tratamento condescendente à narrativa.
Tereza tenta escapar do círculo vicioso a que está presa: pede demissão de seu emprego, reúne seus recursos financeiros e deixa o país para viver uma outra vida no exterior, “cortando todos os vínculos que a prendessem ao chão”. O desfecho que a autora reserva para essa história fica esperando pela curiosidade dos leitores. O sol, a luz que renova dia a dia — mesmo neste mundo de crescente desolação — ainda pode ser capaz de nos fazer transcender a prisão cotidiana? A literatura é uma promessa de felicidade?
Carmen Novo nos apresenta neste livro uma história que, ao menos em parte, já lemos ou ouvimos em canções conhecidas. Afinal, todas as narrativas do mundo já não nos são familiares? O que realmente importa é como o escritor conta a sua história. É nisto que o trabalho de Carmen se distingue. Percebe-se que, nos bastidores da escritura da história de Tereza, há uma autora consciente de seu ofício. Sabe da importância da escolha de cada palavra, de cada vírgula. E que sugerir, muitas vezes, é mais importante do que dizer.
Este é o primeiro trabalho literário ficcional de Carmen Novo a ser publicado e sua leitura nos diz que o futuro disso é promissor.
Mais do que a simples crônica de uma vida ordinária, Tereza é mais rápida que o sol alinhava de forma perfurante a inquietude contemporânea: entre a ânsia de apagar vestígios do passado e o desejo visceral de reinventar-se, Tereza faxina as gorduras da memória em sua incessante busca por significado em um mundo que parece insistir em reduzi-la à inercia. Sua jornada exercita a estranha arte de transmutar pontos finais em reticências.
A prosa de Carmem Novo é de uma concisão poética feroz que não deixa espaço para nenhum tipo de excesso. Paradoxalmente, no entanto, derrama-se em simbolismos. A faxina doméstica, por exemplo, transforma-se em metáfora de uma limpeza interna, uma tentativa de esvaziar não apenas gavetas, mas também os fantasmas emocionais que nelas se encontram. As lâmpadas gêmeas que se apagam, a salmoura ritualística, o carro que “morde a mangueira do radiador de raiva” — detalhes como esses elevam o cotidiano ao plano do universal, sugerindo que a batalha de Tereza não é apenas contra a poeira ou a gordura, mas contra a própria frágil e efêmera condição humana.
Embora a solidão seja um fio condutor que permeia cada capítulo, Tereza carrega multidões dentro de si. Carmen Novo constrói uma protagonista complexa, cuja força reside justamente em suas fraquezas. Nem heroína nem mártir, Tereza é humana em sua plenitude contraditória, revelando uma resistência silenciosa contra expectativas alheias e sugerindo que talvez a redenção esteja não na fuga, mas na aceitação de que a felicidade é mais uma construção íntima do que um destino.
Nesse sentido, o título “Tereza é mais rápida que o sol” parece revelar a essência da personagem e sua relação com o mundo. O sol, como marcador do tempo, representa a passagem inevitável da vida. Tereza, ao ser “mais rápida”, encarna a tentativa de fugir da rotina, do envelhecimento ou das demandas cotidianas. O sol também simboliza clareza, verdade, exposição. Tereza, porém, corre para evitar ser iluminada — ou seja, para não confrontar suas dores, memórias ou fragilidades. Sua velocidade é tanto fuga quanto proteção: ela se move rápido para não ser alcançada pela luz que desnudaria seus vazios e contradições. O título, assim, carrega uma ironia: Tereza corre, mas nunca ultrapassa o que tenta deixar para trás. Assim como o sol, seus movimentos são em círculo, sempre a reconduzindo a si mesma.
Há poesia na ideia de competir com o sol. Mesmo sabendo que não pode vencê-lo, Tereza insiste em correr. Essa persistência é um ato de resistência que captura a dualidade humana entre a consciência da finitude e a coragem de seguir em frente. Esta é a tragédia e a grandeza de Tereza: sua luta por liberdade em um mundo que insiste em mantê-la presa, sua dança entre a luz e a sombra, e sua recusa silenciosa a se render à quietude — mesmo que isso signifique correr em direção a si mesma, repetidas vezes.
Tereza é mais rápida que o sol não termina na última página. Ecoa no leitor como um desafio: quantas Terezas habitam em nós? Quantas faxinas adiamos, quantas cartas fingimos não receber? Carmen Novo não oferece respostas, mas acende uma lanterna para iluminar nossos próprios cômodos internos. E nessa luz crua, entre trapos e sonhos, talvez encontremos a lentidão necessária para, assim, nos enxergarmos.
Acabo de ler Tereza é mais rápida que o sol e fiquei comovida com essa mulher que é “tão eficiente e imóvel como a máquina, produz mais do que a empresa suporta”. Quem não? Carmen Novo compôs Tereza com tudo aquilo de que somos nós mesmas compostas: meio máquinas de trabalho que de tanto se acostumarem a atender a todos os chamados para garantir um lugarzinho ao sol não sabem mais parar. Por sorte o movimento ágil de Tereza não a embrutece totalmente e ela pode dar conta de uma boa virada. Amei Tereza sobretudo porque ela não é feita de estereótipos e sei que me encontrarei com ela logo ali. Mas queria dizer mais duas coisas de sua autora: conheci a Carmen Novo quando trabalhava no Sesc do Estreito (Florianópolis) e ela foi acompanhar sua instalação De tudo fica um pouco, a da segunda foto. Era uma coisa tão bela, tão singela e impactante que eu entendi o que era arte com alma. Era isso pra mim. As roupas não estavam vazias. Depois ela me deu a foto mais bonita que poderia encontrar pra ser a capa do meu livro Ninguém, em 2016. Estarei sempre em dívida, Carmen, porque você me deu três coisas belas e isso já é um tesouro.
Leio o título Tereza é mais rápida que o sol, do livro de Carmen Novo, como uma definição afirmativa que me atrai, mas ao mesmo tempo me instiga a duvidar dessa certeza assim oferecida de imediato. Por isso, a transformo numa interrogação: Tereza será mesmo mais rápida que o sol?
Afinal, estou diante de uma narrativa cuja escrita oferece e sonega os sentidos, de modo que afirmação e negação permutam seus caminhos, contaminando-se a todo momento e é esse jogo contraditório que me fascina na ficção.
Pouco importa saber quem é exatamente essa Tereza de que o narrador me fornece um retrato no qual focagem e desfocagem da personagem se complementam. O que conta é a percepção aguda das tensões existentes na interioridade dessa mulher, principalmente a que reflete “a dualidade humana entre a consciência da finitude e a coragem de seguir em frente”, como diz bem Kleber Albuquerque no prefácio. Mas há outras contradições que levam a figura feminina a uma inquietação constante: opacidade (obscuridade) e iluminação (transparência), mesmice e transformação, intimidade e exposição, apego a si mesma e consciência social, a seriedade no cumprimento de seus deveres e a liberdade para fruir seus prazeres, enfim, um dialética tramada no tecido da escrita.
A presença de dois signos fundamentais para o funcionamento poético da linguagem, marcando-a pelo lirismo – sol e faxina – é outra estratégia que destaco no texto de Carmen Novo, também assinalada pelos prefaciadores. Talvez não tanto pela doçura de sua perspectiva diante do mundo e sim pela surpreendente (insólita?) analogia entre o movimento do ser inquieto de Tereza e o do sol, na verdade, este funcionando como metáfora do (des)aparecimento tanto dele quanto dela. Mas será que Tereza desaparece mesmo? e como isso se dá? como? E quanto à faxina? A necessidade de limpeza e ordenação do que é indesejável no interior de Tereza é outra metáfora interessante, mas a personagem conseguirá mesmo tal “assepsia”?
A meu ver, esses dois signos, para além dos sentidos simbólicos em sua relação com a personagem, estabelecem uma homologia entre o imagético ou visual (sol) e a práxis ou ação física (faxina) enquanto caminhos para o autoconhecimento. Enfim, são contradições que vão se entrecruzando na narrativa – o plano abstrato da conscientização e o rasteiro do cotidiano, o imaginário e a realidade concreta.
Eis uma sensibilidade que se abre para captar a realidade em seus múltiplos aspectos a ganharem corpo na linguagem. Seria um olhar (fotográfico?) que gira “como um caleidoscópio dotado de consciência” ou “um eu insaciável do não-eu”1 (assim Baudelaire define o olhar de todo artista) porém, não seria uma perspectiva que acaba por revelar ainda mais intensamente o eu?
Penso que sim, porque o foco para retratar as experiências vividas por Tereza parte de si própria; apesar de o relato ser conduzido pela 3ª pessoa, o “ela” está matizado e filtrado pela personagem: ‘Aquela pilha de papéis com anotações sobre nem sabe o quê – afinal, de que servem ideias engavetadas? – continuou no lugar de sempre.” (p. 23). Indagações, dúvidas, reflexões tingidas de ironia, resvalando para o sarcasmo são marcas de um eu que não consegue deixar de afirmar sua presença:
“Deixe de pensar em si e ajude uma pessoa carente.
Ela obedece aos conselhos à risca e fica até orgulhosa por conseguir ser tão boa com o mundo hostil que a cerca. Essa mulher se basta.” (p. 34)
Uma mulher que não teme revelar autossuficiência, mesmo reconhecendo suas inquietações e fraquezas. Saber cercada de amigos (“um milhão”!) não elimina o desejo de estar consigo mesma ou renovar constantemente suas relações, como um astro a girar pelo firmamento, numa órbita própria, acelerada e liberta do previsível. A necessidade de romper com a mesmice ou o dejà vu, mesmo sabendo ser impossível, gera em seu interior uma ansiedade ou descontrole emocional que se expressa, por metonímia, em ações concretas: “O vai e vem entre a cozinha e a sala foi ficando frenético, quase neurótico.” (p. 22).
Talvez o momento clímax dessa “neurose” convertida num ato surpreendente para o leitor é o que se intitula “Carta”, cujo conteúdo escrito intensifica a volúpia por uma independência reconhecida como inevitável, acelerando a radical tomada de decisão pela personagem. O que Tereza lê que a descontrola de modo a querer romper com o círculo opressor para ir à procura de novos caminhos? É o que o leitor irá descobrir ao acompanhar as páginas finais do livro.
Na verdade, estamos diante de um eu (novamente recorro a Baudelaire) que faz mover sua lente para focar novos espaços, imagens e apelos para alimentar sua sensibilidade insaciável. Um eu que imprime sua marca, como se carimbando seu passaporte para o exterior do país.
Há momentos na escrita de Carmen Novo que rompem com o formalismo e convenções da linguagem, instaurando certa leveza e revelando um toque coloquial que cria maior familiaridade com o leitor, como em “O automóvel mordeu a mangueira do radiador, talvez de raiva pelo desprezo (p. 45) ou em “Ctrl, Alt, Del para todos os seus sonhos matutinos. O trabalho também é distração.” (p. 30) – uma “distração” que se expressa na performance da escrita. “Tereza abriu a sacola, pegou as recém-compradas gêmeas, subiu na cadeira e lhes deu a permissão para cumprir seu destino nesta Terra.” (pp. 41-42). Nesta passagem, a obrigação (troca de lâmpadas queimadas) se tinge de um desabafo sarcástico para superar o indesejável do cotidiano. E neste outro momento, já mais “Leve” (como se intitula o capítulo), a descrição de sua postura ao decidir seu destino se reveste de curiosas comparações: “O jeito de caminhar e a postura de cavalo de raça sempre chamaram atenção de todos, assim como seus modos de quatrocentona. Mas qualquer atitude, nesse dia, era pura elegância.” (p. 63).
O autorretrato que compõe de si mesma quando está no aeroporto antes do embarque é exemplar para expressar o conflito feito de apego e desapego em relação às suas origens, afinal Tereza era fruto de uma mestiçagem, “talhada com genes de seus ancestrais” e “a mescla com negros e indígenas” só mostrada “na aspereza e desenho das mãos e pés.” (pp. 73-74).
Aliás, ela própria reconhece essa “mistura de desprezo e apego desproporcionado ao que, enfim, escolheu para sobrar de sua vida” (p. 80), pensou ao estar no hotel em que se hospedara. Tal ambiguidade é a marca essencial dessa personagem, fortemente tensionada e alimentada por sonhos também feitos de dualidades sem resolução. Uma delas, entre tantas outras, é seu imaginário (fantasia?) que voa para o espaço envolvido por elementos e seres rurais, “um fogão à lenha, uma carroça (...) umas cabeças de gado. Para o jardim, pôneis e mini vacas, carneiros e ovelhas.” (p. 80), mas ainda sem permitir “que ela se desenhasse na paisagem.” (p. 80). E por que não se integra a esse cenário? Afinal, o que o motorista lhe oferece como opções da realidade à sua volta são “docerias, boutiques, lojas de departamento”, ou seja, o apelo para o consumismo.
As suas vontades se embaralham como nebulosas, mas uma única certeza existe para Tereza – a de que conseguiria ser feliz. Porém, fico, como penso que também os leitores, com dúvidas sobre essa felicidade.
O “Assim” que fecha o livro de Carmen Novo acaba por sugerir que é esse o modo de conseguir (ou se aproximar da?) felicidade: aceitar-se como é, “assim”, com todos os contrastes conflituosos de sua natureza mais íntima. Por isso, uma afirmação como “Era essa a parte da faxina que lhe faltava”, depois que “chorou mais de duas horas até parar, sedada pelos fenômenos bioquímicos da natureza humana” (p. 80) não nos conforta, antes, nos deixa mais perplexos e interrogativos, pois a faxina, literal e figurada, nunca estará completa para essa personagem (autobiográfica?) criada por Carmen novo.
Para finalizar, lembro Roland Barthes, para quem autobiografia é a “ficção de si enquanto outro”, um simulacro, por meio do qual ao mesmo tempo o eu aproxima-se e distancia-se de sua própria identidade, transformada num jogo escritural.
Para aqueles que desejam confirmar esse pensamento instigante de Barthes, leiam o livro de Carmen Novo.
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1 Tomo as palavras de Baudelaire ao definir o olhar do artista em seu ensaio Sobre a modernidade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.21).