Fernando Chagas Duarte (1964, Lisboa) é geógrafo, escritor, fotógrafo amador e viajante do mundo e de suas particularidades. Participou da criação de associações e iniciativas coletivas voltadas ao patrimônio cultural e imaterial. É autor dos livros de poesia A hora das coisa e As palavras que faltam, Oblíquos, O voo da flor enquanto rosa e Nos confins de um lapso; além do romance O fim de um lugar . Tem obras publicadas na Bélgica, Brasil, Chile, Espanha e Portugal, em cerca de vinte coletâneas e revistas literárias.
Esta é uma obra poética que mergulha na linguagem e na existência com sensibilidade e profundidade. Misturando simplicidade e densidade, seus poemas revelam significados ocultos e múltiplos sentidos. Inspirado por ideias filosóficas e literárias, o autor transita entre o íntimo, o espiritual e o social, tratando corpo, afeto e silêncio como espaços reveladores. Com olhar crítico, evoca memórias e reflexões sobre a condição humana. A obra desafia o óbvio, valoriza a liberdade e expressa resistência silenciosa diante das tensões do cotidiano.
Conheci Fernando Chagas Duarte em 2019, na Casa do Alentejo de Lisboa, quando do lançamento de seu livro O voo da flor enquanto rosa. Desde então, nos tornamos amigos e li quase toda a sua obra, inclusive o romance No fim de um lugar.
Cultivo hábito particular de avaliar obra poética perguntando se desejo ou não relê-la. A poesia possui uma aderência espiritual inequívoca. Romance, se gosto, leio duas, três vezes, não mais. Poesia é diferente. Se encanta, passo o resto da vida a reler, como faço desde jovem, com Pessoa, Camões, Drummond, Bandeira, Ruy Espinheira e tantos outros poetas de cabeceira. Assim, incorporei Fernando Duarte à minha lista.
Este é seu primeiro livro no Brasil. Daqueles em que nenhum poema é descartável: podemos ter preferência por um ou outro, mas amamos o conjunto, qualidade de um poeta maior.
Távola Rasa é uma espécie de “explosão” ou “grito” do silêncio, palavra mágica que Fernando empunha como fonte de criação. Do silêncio, desabrocha e se expande a poesia. Pode-se falar de uma algaravia do silêncio; ou de uma sinfonia do silêncio. “Lugar de silêncio” é lugar de poesia, onde “o mar é uma linda bailarina que (…) extasia os olhos e desconsola”. Por isso, o poeta convida a deixar “fluir o sossego pelas mãos vazias do silêncio”. E a escutá-lo bem, pois, afirma, “pouco mais quero ouvir”, “talvez seja a dormir que melhor vejo o mundo”. Noutro poema, afirma: “o silêncio rodeia-me como às quatro da manhã”. E segue, com versos curtos, condensados, ricos de surpresas e metáforas que beiram o non sense: “talvez tenha sido esse o silêncio jamais escrito”. Ou, ainda melhor: “estás hoje tão bonita quanto o silêncio que me habita, assim é minha terna paixão”.
Convido o leitor para uma ceia fantástica nessa Távola Rasa: um verdadeiro banquete poético.
Escrutínio do insondável
Escrevo a partir do que não pode ser escrito.
Jacques Lacan, “Seminário 20”
Em Távola Rasa, Fernando Chagas Duarte confronta a realidade de seu fazer poético com a definição do termo que dá título ao livro, seja em sua conotação filosófica ou nas acepções jurídica e literária, pois há na sua escritura justamente uma oposição, ao não fazer coro com o que diz, sendo que seu verbo que se faz carne não ignora ou despreza sua força semântica e os fluxos estéticos que dele emanam, ao revelar que “sem a palavra/ sou de um mundo cego.”
A partir dessa perspectiva enunciadora, em “Renúncia da incerteza”, o poeta evidencia que, não obstante “a impotência da linguagem/ e o espanto de um ruído/ pelo gume de uma sílaba”, entabula sobre o desafio da pauta virgem um exercício permanente de observação do mundo e das coisas, como literalmente revela: “O papel branco/ é o lugar eterno, ali me discuto e encontro, ali onde nada é bom/ sentado sobre a astúcia da respiração, a trabalhar intensamente.”
Para além da órbita dos conceitos e da convicção de John Locke, que considera que, em tabula rasa a mente humana nasce do conhecimento zero e parte para preencher as lacunas, é que Duarte investe na sondagem do imponderável com inegável espírito escrutinatório, nascendo de seu empenho e de seus artefatos uma construção não apenas sensorial, mas de profunda prospecção nos signos da linguagem e nos labirintos da condição humana, tudo atravessado por um olhar crítico-reflexivo.
Que a poesia irreprimível te seja hoje — adverte-nos nas primícias do livro, a chave para uma imersão compreensiva de si e do próprio leitor frente ao arcabouço criativo que se apresenta como uma instância em que “a palavra plena é palavra que faz ato”, capturando o dizer preciso de Lacan. Fernando tem a consciência de uma poética de escafandristra, tal a intensidade com que mergulha não apenas no pélago das questões íntimas, abstraído de um lirismo sentimental ou nostálgico, quando na propulsão de uma narrativa em que o metafísico e o onírico são apreendidos na “voz minuciosa do poema”, este espaço de indagações mais que de respostas, é onde vai descobrir (ou resgatar o que estava “naquele lugar” ocluso) o “fascínio devolvido ao inexprimível”. Também aí se opera “a respiração do poeta”, pois escrever é seu pulmão, chão, teto e horizonte, territórios de identificação e comunicação, qualificadores de uma emulação permanente, em que a palavra sobrevive a todo o caos num mundo que se decompõe, estiolado por tantos dilemas e contendas; e não resistir ao sufoco dos tempos tão conturbados seria uma auto-sabotagem, então resta-lhe proclamar que “um poeta respira o que respira,/ que não é pouco ar.”
Fernando Chagas Duarte é um autor que não reduz sua proposta poética a explosões melancólicas ou diluições emocionais. O sentido de elaboração formal, de esmero na apropriação de imagens (“para que serve o sol/ se não para se agradecer à flor a sua luz?!), de encadeamentos metafóricos (“é o poema o ciúme que existe dentro da exacta palavra”) e outros registros ou escutas das experiências exteriores, que povoam seu imaginário individual ou coletivo (“gosto das avenidas largas/ dos outros países/ e das manhãs ímpias do meu,/…”), conferem ao conjunto uma escrita densa e rigorosa, porém cristalina e delicada, com ritmo e musicalidade, cuja harmonia realiza um fluxo entre o camerístico e o sinfônico, numa pluralidade de vozes e sentidos.
Diversos são os campos e categorias esboçados pelo poeta, além do lírico, do social ou do metafísico. O corpo, o afeto, a carnalidade e o erótico, referidos menos pelo declarado e mais pela instrospecção, intuição, silêncios e insinuações, encontram abrigo na sua poesia nomeando instantes de pura epifania (“velho aprendiz, a exaltação dos olhos diz-me que ainda/ não é tarde para desfolhar a chuva, que é este o tempo/ de me erguer no teu peito. estás hoje tão bonita quanto/ o silêncio que me habita, assim é a minha terna paixão.”). O passado rememorado também é sutilmente conectado na escavação de lembranças de um tempo que lhe faculta explorar camadas de um mundo doméstico e interior, numa análoga sensação proustiana, como no poema “No extremo idiomático dos dias”, remetendo-nos à ideia de Henri Bergson, que em seu ensaio “Matéria e memória” fala da relação entre corpo e espírito. Daí sua forte e multifacetada expressão artística, na qual percebem-se outros valores, como as heranças e influências de seu percurso de leituras, um trânsito com diversos autores, como se inferem das epígrafes que incorpora em vários poemas, num evidente recurso que não apenas flerta com a temática desses pares, mas também um diálogo que se converte em homenagem e intertextualidade (“que me dizes Cecília?/ que tenho medo, que medo é esse de acabar/ mais cedo que a vida…”).
No vórtice de Távola Rasa Fernando Chagas Duarte escande o “espaço indecifrável” de sua cosmogonia poética, na qual “coincide um universo firme de palavras,/ uma coluna vertical erguida de humanidade”. Eis o terreno fértil no qual especula sobre o não apenas tangível, mas deslocando sua atenção para o que é esconso e incognoscível. Numa certa topografia, a partir do observatório pessoal e singular sobre as complexidades do ser e do tempo, na expansão de uma concepção de extrema sensibilidade para o inaudito, atento ao subreptício e ao interedito, sem idealização do mundo, mas numa meditação ontológica sobre o efêmero e a incompletude que há em tudo, o autor vasculha os mistérios e angústias existenciais.
Estamos diante de uma escrita vigorosa, versátil e visceral, que guarda familiaridade com o que preconizou outro grande poeta português, Manuel Gusmão – “A poesia é o que recapitula o mundo/ chamando-o em cada chama/ pela chama de cada sílaba.” Cabe ao leitor, com sua inequívoca e natural vivacidade, lançar sua bateia na aluvião desse conjunto plurissignificativo, para garimpar outras pérolas e preciosidades e descobrir nos subterrâneos dessa poética depurada novos elementos, o que a camisa de força de uma apresentação não nos faculta avançar.