Guimarães Rosa sentia-se cavalgado pelo diabo quando escrevia. Nesta madrugada, senti-me arrebatado pela poesia de Ronaldo Werneck e só interrompi a leitura quando cheguei ao fim do último poema. Levantei-me e comecei a escrever estas linhas para atenuar a comoção e poder voltar para o cotidiano, anunciado pela aurora, orvalhado e pacificado.
A epígrafe de Baudelaire (Tout homme bien portant / peut se passer de manger/ pendant deux jours, / - de poésie, jamais!) é a que mais iluminou minha leitura. A última estrofe do primeiro poema, uma auto-apresentação na primeira pessoa, ecoa essa epígrafe e funciona como uma profissão de fé na poesia: “crê que sem comer / viver possa um dia,/ nunca sem poesia.”.
Ronaldo escreve sob o signo da paixão e é, ao mesmo tempo, um poeta cósmico e um grande observador minimalista dos pequenos detalhes de sua própria paisagem íntima, da alma humana universal e das circunstâncias do tempo que lhe é dado viver.
2- DA VASTIDÃO
mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração.
(Carlos Drummond de Andrade, “Poema de sete faces”)
Os versos de Ronaldo parecem abarcar o universo e despertar profundezas em seus leitores. O poeta assesta o seu telescópio. Recorto, meio ao acaso, alguns versos que dão notícia dessa ânsia de totalidade: “80 dias já a volta ao mundo” (“d´lira dos oitent´anos”), “o mundo / em suas mãos / gira / em torno do sol” (“o goleiro atônito”), “por todos os lu(g)ares / mar de não se acabar” (43 modelo 44”).
São versos reveladores de estados de alma açambarcadores. Uma poesia “tudista”. Se existe “niilismo”, por que não poderá existir “tudismo”?
3 - DO DETALHE
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
(Carlos Drummond de Andrade, “Mundo Grande”)
Esta poesia tem uma inteligência minimalista dos detalhes e das singularidades. Sirvam de exemplo estes versos: «e eu olho / por entre teus olhos / de sol / e amargura» («a metrópole na boca»), «clara / escolhe um livro (grifo meu) / e passa a lê-lo” (“manhã clara”), “chacoalhando / na parede / a bunda / magnífica” (“Marilyn Monroe em dois tempos”).
O poeta se debruça sobre seu microscópio.
4 - DE UM EXERCÍCIO DE LIBERDADE
Ronaldo Werneck exibe uma inimaginável liberdade para lançar mão de ritmos inumeráveis, de inesgotáveis imagens surpreendentes e de variados “desenhos” criados pela distribuição dos versos na folha branca de papel. As palavras dançam, serpenteiam, se horizontalizam, se verticalizam, se constelam, mergulham e alçam voos. Vale lembrar o aproveitamento intersemiótico que Ronaldo faz de outros códigos artísticos, que potencializam a expressividade verbal. Basta observar a rica presença da fotografia.
Este livro mostra vários poemas extensos como «l´après-midi à tipasa” e minimalistas como esta lúdica experiência a partir da palavra-alicerce “criança”: “criança / criânsia / crianção / criancião” (“Criancião”).
5 - DE UMA CONCLUSÃO DIALÉTICA
Se a vastidão é a tese e o pequeno, a antítese, a poesia de Ronaldo Werneck reunida neste livro é uma bela, livre e luminosa síntese.
Artista de inspiração demiúrgica por força de uma aguda consciência estética, RW se apropria de todos os signos da linguagem para recriá-la e ressignificá-la. Em clave baudeleriana, da qual decorre o título desse conjunto foto-cine-poético, emerge um pout-pourri verbo-imagético-sensorial. De sua plataforma crítico-reflexiva lança um olhar escrutinador, pluridimensional, imersivo e polissêmico sobre o que é essencial, profundo e humano. Uma escrita visceral, de fluxo intertextual e metalinguístico, que concretiza um certo ‘zeitgeist’ (espírito do tempo) e consolida sua voz inconfundível, cuja expressão flerta com a autodefinição de Murilo Mendes: “Sou poeta irrevogavelmente.”
Ronaldo, seu livro está ótimo, a partir do título e da apresentação do mestre Antônio Sérgio Bueno. E continua num ritmo crescente, levando de roldão o leitor para quase ao final partir para o mar da Bahia (como bom mineiro que você é) em mil peripécias até chegar muito bem aos poemas visuais (um achado, este acréscimo) para coroar a obra.
Parabéns mil vezes!