Escritor mineiro premiado. Autor do recente Vale das ameixas e de A voz dos sinos, ensaio livre sobre o sagrado, a mulher e o amor na obra de Osman Lins, ambos lançados pela Sinete em 2024. Ele tem vários outros livros publicados. Jornalista formado pela UFMG (1976) e doutor em Literatura Brasileira pela USP (2005), Almeida vive em São Paulo desde 1984.

 

Site do autor: hugoalmeidaescritor.com.br

Confira também: Vale das ameixas e A voz dos sinos

 

MIL CORAÇÕES SOLITÁRIOS

 

Em estilo solto e divertido, Níobe escreve cartas para a mãe sobre a vida infeliz no casamento e o marido Gamaliel, silencioso e enigmático. A solidão se reflete nos filhos “René (tão edipiano) e Ana (Freud a explica)”, observa a escritora e psicanalista Ana Cecília Carvalho na orelha de Mil corações solitários, romance duas vezes premiado nos anos 1980, agora em 4ª edição pela Sinete, revista pelo escritor e ampliada com posfácio, carta do autor, notícias e artigos sobre o livro. “Hugo Almeida transita com seguro manejo de seus artefatos por essa história bem urdida em sua teia de inquietações”, diz o escritor Ronaldo Cagiano no posfácio. Almeida é autor do romance Vale das ameixas.

 

POR ANA CECÍLIA CARVALHO

 

Em boa hora de novo reeditado, Mil corações solitários, vencedor de dois prêmios nacionais na década de 1980, merece de fato ser lido e relido. As leituras não se esgotam, pois abrem sentidos e promovem assombros, inquietações, surpresas, perguntas. Construído tal um patchwork, às vezes temperado com fina ironia, outras com o toque mágico de escritor e pensador sobre o ser humano, suas perfídias e superações, deste romance não saímos impunes. Com escrita refinada e segura, marca do autor, Hugo Almeida traça a história de uma família na qual as vozes, identidades e dramas se alternam e se entrelaçam, revelando diferentes perspectivas tanto humanas quanto políticas, pontuadas que são, aqui e ali, por alusões histórico-sociais.


Jogada num casamento abusivo que a deixa solitária, infeliz e sem saída, a personagem Níobe, recém-casada, escreve cartas para a mãe, o que continua a fazer até mesmo após tornar-se órfã. O destino dos filhos de Níobe – René (tão edipiano) e Ana (Freud a explica) –, que sobrevivem marcados pela união distópica de seus pais, se conecta, cada um à sua maneira, com o nunca dito – o mal-dito –, que precisa ser decifrado, da solidão da família. A reviravolta ou peripécia, lição dos gregos, surpreende o leitor quando se revela, de modo insuspeitado, a força de Níobe. Metáfora de marcantes episódios históricos, nesse ponto se modifica a trama que aprisionava a todos em uma situação injusta, opressiva e cruel.


Com este Mil corações solitários e o recente Vale das ameixas (2024), a literatura de Hugo Almeida alcança a linhagem de grandes escritores brasileiros contemporâneos. Hugo tem o olhar refinado dos poucos que sabem tornar o texto literário em convite para um constante deciframento, ali onde a palavra emudece e volta a soar para produzir sentidos e vislumbrar o infinito da linguagem. 

 

POR RONALDO CAGIANO

 

Um romance ousado e singular: simbiose entre História e Linguagem


Há três coisas que têm realidade na literatura: a consciência, a linguagem e a forma. A literatura dá forma, através da linguagem, a momentos particulares da consciência. É tudo. A única forma possível é a narração, porque a substância da consciência é o tempo.
 Juan José Saer, Cicatrizes


Em Mil corações solitários, com seu viés fragmentário, perpassado por uma poética intrínseca, que mescla diversas formas, ao tomar como empréstimo estruturas do diálogo, do monólogo, da poesia, da entrevista, do cunho epistolar, do questionamento, da reflexão filosófica e do fluxo de consciência, Hugo Almeida transita com seguro manejo de seus artefatos por essa história bem urdida em sua teia de inquietações. Recompõe, em clave sinuosa e descontínua, as vivências de Níobe, uma mulher amputada em seus sentimentos, condicionada a um casamento arranjado, empurrada para um destino que se desenrola numa sucessão de angústias e apreensões, o que vai sendo enunciado pela personagem, como numa sequência de palimpsestos, em sua obstinada escrita de cartas para a mãe falecida, o que funciona como uma espécie de divã (ou confessionário) para suas queixas e divagações.


Metáfora às avessas da deusa grega da fertilidade, Níobe é aqui o contraponto de uma figura que tenta escapar ao fracasso de ser pedra ou estátua dentro da própria casa e à infértil esperança num casamento monolítico com Gamaliel Carvalho. Homem ensimesmado em sua mudez e silêncios, enfurnado não apenas em seu escritório, mas em sua mentalidade arredia, não oferece à mulher, como ela mesma deduz, senão “uma casa vazia com minhas tristezas e perguntas”. Essa impossibilidade de asas, de convívio e interlocução, vai gerando mecanismos de defesa, válvulas de escape e pontos de fuga ao perceber que há fôlego em outras experiências além do opressivo nicho familiar, algo vetado em seu limitado e imposto universo, mas perceptível lá fora – “Uma vida que eu não sabia dentro de mim”.


Escrita visceral, com suas plurívocas referencialidades, o amálgama da intertextualidade, da metalinguagem e analogias, que joga o leitor num vórtice de sensações, transcende o mero espectro do enredo, das tensões e atmosferas, culminando no enfrentamento daquela consciência estética de que falava Borges sobre a linguagem, para quem os “labirintos são signos evidentes da perplexidade”. Hugo explora esse e outros aspectos, paralelamente à imersão nas idiossincrasias e psicologia dos personagens, numa dimensão sensorial e mítica que incorpora não apenas o domínio das subjetividades da tumultuada existência de Níobe e seus filhos René e Ana, como apropria-se do pano de fundo da realidade individual e coletiva para, em vários registros e recortes, evocar memórias e reminiscências da trajetória do país, que também experimenta suas rupturas e metamorfoses sociais e políticas, num paralelo de contradições, abismos, impasses e dilemas que os atravessam.


Original, versátil, polifônico e de esmerada construção verbal, Mil corações solitários, quase quatro décadas após conquistar o prestigiado Prêmio Nestlé de Literatura de 1988,  reeditado em boa hora pela Sinete, confirma o talento de um autor e a qualidade de uma escritura arrojada e de rigor estilístico, mantendo-se atualíssima e incontornável como verdadeira obra de arte em língua portuguesa.


Feito a chave para abrir as tantas portas que uma obra nos oferece, em Mil corações solitários Hugo Almeida, com sua sensibilidade linguística e seu olhar semiótico, num puzzle inventivo, sinaliza o rio que recepciona tantos afluentes, confluências e influências, por onde drena “o sopro de um texto, duma história” que fisga o leitor e o arregimenta para outras miradas que descortinam distintos horizontes, onde se “mergulha naquilo” que é essencialmente literatura, ao adentrar a geografa física e emocional seccionada de uma personagem instigante e intrigante, essa Níobe envolvente e transfigurada.


Estamos diante de uma obra pungente, vigorosa e engenhosamente erguida com os mais eficazes e refinados recursos, na expressão de uma sintaxe peculiar, fruto de uma estreita sintonia do autor não apenas com os elementos que constituem a arte, mas de um acurado senso de observação do mundo, em harmonia com a reflexão de James Wood em  Como funciona a ficção (tradução de Denise Bottmann, CosacNaif, 2011, p. 71): “A literatura nos ensina a notar melhor a vida; praticamos isso na vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhor o detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos faz ler melhor a vida”.


Nessa época de visível pauperização do conceito sobre o que é (ou deveria ser) uma boa literatura, com o predomínio do poder avassalador dos influencers, youtubers e booktubers como balizas (ou o nivelamento por baixo, com o incensamento de uma certa prosa de confeitaria, que rende tiragens miliardárias, como sabão em pó) da produção ficcional contemporânea, em detrimento dos verdadeiros críticos, ensaístas e professores, vale destacar o que escreveu Dony Antunes em sua resenha (Correio Braziliense, 8.12.88) – e necessário repeti-lo por também corresponder ao mesmo e atual sentimento: este romance “representa um bem-sucedido sopro de vitalidade e digestão de experimentações no nosso desprofissionalizado e combalido universo literário”. Mais que oportuno, o resgate de uma obra de tamanha força imagética e carga semântica é um alento e um frescor em meio ao lixo literário ungido pelo mercado editorial, sobretudo num momento de banalização da literatura, atualmente sequestrada pelo identitarismo, que relega a criação artística a um plano menor, quando um autor vale pelo contexto, não pelo texto; pela origem, bandeiras e militâncias, não pela linguagem.


Portanto, no futuro, com melhor juízo e isenção, quando a mídia e a crítica realizarem a cartografia para ressignificar e ajustar a bibliografia nacional, não será forçoso admitir, mas justo reconhecer que Mil corações solitários, sem nenhum favor, constará entre as obras marcantes do cânone brasileiro.


Lisboa, primavera de 2025