Nima Spigolon nasceu em Rio Verde (GO) em 1971. É pedagoga, professora e pesquisadora brasileira. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atua como docente na Faculdade de Educação da mesma instituição. É referência nos estudos sobre Educação Popular, Paulo Freire e Elza Freire, com destaque para sua obra Elza Freire e Paulo Freire: noites de exílio, dias de utopia (Editora Pangeia), vencedora do Prêmio Jabuti Acadêmico 2024. Coordena o GEPEJA (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos) e integra redes como ANPED, ANPUH, ABRESC e o Observatório Paulo Freire. Sua produção acadêmica e literária articula memória, política, formação docente e justiça social.

ELZA FREIRE E PAULO FREIRE - UMA FOTOBIOGRAFIA

 

A fotobiografia Elza e Paulo Freire apresenta a trajetória do casal que revolucionou a educação brasileira e mundial, unindo vida e obra em uma história de amor, resistência e humanismo. Fruto de quase duas décadas de pesquisa de Nima Spigolon, o livro reúne documentos, cartas e fotografias inéditas que revelam o papel essencial de Elza na formação do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire. Da vida em Recife ao exílio e ao retorno ao Brasil, a obra resgata memórias, afetos e lutas compartilhadas.

 

Por Samantha Lodi

 

Uma única imagem é capaz de produzir diversas manifestações.


Pronunciamentos que transcorrem pela memória, a experiência vivida e os contextos históricos são constituídos a partir da observação e da interpretação. Um conjunto de imagens sobre a vida de um casal configura um mosaico original de lembranças. Neste sentido, observa-se na Fotobiografia de Elza Freire e Paulo Freire um mosaico de recordações que evidenciam lutas, resistências, a coragem de seguir em frente em vários recomeços, mas, sobretudo, o entrelaçar do respeito, da amorosidade e do diálogo.   


Mesmo indivíduos que compartilham o histórico ou um determinado grupo cultural, ao observarem uma imagem podem desenvolver distintas interpretações, comentários e apreciações relacionados a própria subjetividade. “E através do compartilhamento da produção/percepção das imagens visuais que percebemos e formamos as séries conexas de imagens” (De Souza Vicente, p. 147).


Há ciências que se debruçam sobre a análise iconológica ou o estudo iconográfico, mesclando hipóteses, pontos de vistas, deduções, comparações e reflexões ao exibirem suas apreciações. Cada qual com seus métodos, possibilita que as imagens conversem com múltiplas áreas do conhecimento e enfatiza o caráter polissêmico que as imagens possuem.  


Aqui, temos a proposta de situar eventos biográficos a partir de fotografias e outras imagens. Fotografias que marcam um “episódio”; eventos cotidianos, sociais ou formais; um encontro entre amigos; cenas domésticas. São fragmentos de um todo. Da saudade de quem enviou um retrato, uma carta, expressando afetuosidade na tentativa de driblar as distâncias impostas pelo exílio. Paisagens, momentos ordinários, trabalho, muito trabalho educativo, cada qual com um significado. Imagens que documentam a vida, a cultura, as relações estabelecidas entre os indivíduos e a sociedade real. 


Por meio  de  suas interferências,  interstícios  e  diálogos, cada  vez  mais  apurados,  na  abóbada neuronal  e  no  seu  imaginário  vivo,  as imagens   escolhidas   evocam   e representam  a  quintessência da história de vida. E assim  temos,  nas Fotobiografias, a conjugação das grandezas derivadas da escolha de quem propõe conjuntos fotográficos com sua pluralidade,  que  habita  o  campo  das possibilidades e que se fazem múltiplas, fartas,  da  formação  de conjuntos fotográficos   à   feitura   de   uma Fotobiografia. (Bruno, 2014, p. 19). 


Fotografias sugerem leituras, mensagens e suscitam questões a serem pensadas e repensadas. Registros da realidade com a intenção de eternizar uma ocasião. Enquanto fonte histórica, dialogam diretamente com a memória. Memória de um e de outro, de uma e de outra, memórias que se entrecruzam nas diferentes perspectivas de um mesmo fato. Memórias que se abraçam, que portam diferentes significados e sentimentos para quem experienciou o momento registrado. 


Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Sendo assim, deve-se duvidar da sobrevivência do passado ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída por materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam a nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (Bosi, 2004, p.55).  


Devemos reforçar que: 


A memória é afetiva. Tem cores, odores, sabores... tem formas, letras, ritmos... A boniteza de um sonho e a relação homem-mulher com a natureza, tão presentes na proposta freiriana, certamente ajudaram a ressignificar e a criar experiências; são como a vida, ora plena profusão, ou não, ora exilada ou na ausência dele. (Spigolon, 2023, p.242).


Elza Freire e Paulo Freire — uma fotobiografia é o terceiro livro da “Tríade Elza Freire”. Os três livros têm origem nas pesquisas realizadas pela Drª Nima Spigolon, professora da Unicamp, escritora, poeta e artvista, que apresentou ao universo acadêmico e à sociedade a educadora Elza Freire como partícipe do trabalho educativo desenvolvido por Paulo Freire. A presente obra é fruto das investigações de seu pós-doutorado, realizado na Universidade Federal de Uberlândia. 


O primeiro livro da Tríade é Elza Freire & Paulo Freire: por uma pedagogia da convivência (2022), e tem sua origem na dissertação de mestrado concluída em 2009, na Faculdade de Educação da Unicamp. O segundo título, Elza Freire e Paulo Freire: noites de exílio, dias de utopia, é resultado da tese de doutorado defendida pela autora em 2014, também na FE – Unicamp. Este último foi laureado pela Câmara Brasileira do Livro, em agosto de 2024, com o Prêmio Jabuti Acadêmico na área de Educação e Ensino.


Considerando a “Tríade”, penso que o leitor tem dois caminhos para adentrar no universo freiriano que nos é revelado por Nima Spigolon: O primeiro é contextualizar as fotografias e documentos da presente obra com a envolvente narrativa das duas anteriormente publicadas — o que, adianto, pode emocionar os observadores mais sensíveis, ao rememorar episódios da ‘diáspora freiriana’; o segundo é simplesmente ser primeiro enlevada/o por essa obra para depois unir a pesquisa imagética à inédita história de vida do casal. É fato que os fascículos estão interligados se quisermos intensificar a experiência com a Fotobiografia. 


Nima, enquanto pesquisadora, demonstrou sua excelência. São diversos arquivos visitados, um minucioso levantamento de obras interligadas ao período de estudo, entrevistas aqui no Brasil e no exterior, com destaque às investigações realizadas em Cabo Verde e Guiné-Bissau, na África. Fica evidente a originalidade de colocar no centro de sua narrativa Elza Freire, ainda tão pouco conhecida por nós brasileiros, sem deixar de fazer as conexões familiares da mulher, educadora, esposa, mãe e camarada. Como escritora, Nima eleva nossa imaginação e criatividade, ao mesmo tempo em que nos aproxima da vida dos Freire.       


Elza Freire e Paulo Freire formaram um casal que transborda amorosidade entre si e em suas relações interpessoais, nos mais diversos ambientes que estiveram. Como afirmou Paulo: O amor é uma tarefa do sujeito. É falso dizer que o amor não espera retribuições. O amor é uma intercomunicação íntima de duas consciências que se respeitam. Cada um tem o outro como sujeito de seu amor. Não se trata de apropriar-se do outro. Nesta sociedade há uma ânsia de impor-se aos demais numa espécie de chantagem de amor. Isto é uma distorção do amor. Quem ama o faz amando os defeitos e as qualidades do ser amado. Ama-se na medida em que se busca comunicação, integração a partir da comunicação com os demais. Não há educação sem amor. O amor implica luta contra o egoísmo. Quem não é capaz de amar os seres inacabados não pode educar. (Freire, 1981, p.29).


O amor uniu os pernambucanos Elza e Paulo em 1944 na cidade de Recife. Amor que se transformou em coletivo, solidário e esperançoso e que continua resplandecendo em experiências e práticas inclusivas de trocas de saberes. Com essa parceria, a ‘pedagogia da convivência’, expressão criada por Nima, coloca-se em prática.  


Dividido cronologicamente, Elza Freire e Paulo Freire — uma fotobiografia tem seu primeiro tópico de 1916 até 1964, do ano de nascimento de Elza até o golpe militar. Aqui temos as primeiras imagens familiares, a infância, filiação, casas onde viveram, certidão de nascimento, locais onde estudaram, a inserção na educação.  Também imagens dos registros do casamento religioso e civil, a chegada das filhas Madalena, Cristina e Fátima na década de 1940, e dos filhos Joaquim e Lutgardes na década de 1950. 


Elza nasceu em Recife em 1916, cursou nos anos de 1930 a Escola Normal de Pernambuco, ela escolheu a educação como seu caminho. Paulo, que nasceu em 1921, foi cursar Direito. Com o encontro dos dois, Elza foi despertando Paulo para educação. Nos anos 1950 atuaram junto ao Instituto Capibaribe, em Recife, PE, onde os filhos estudaram; mas ela já era diretora escolar e tinha desenvolvido uma proposta de arte-alfabetização; Paulo atuava no SESI, como educador; e ambos se aproximaram dos Movimento de Cultura


Popular (MCP) e Movimento de Educação de Base (MEB), conforme Spigolon (2023).


Em 1961, Elza conclui o curso de Psicologia. Importante ressaltar que “Elza existia antes de Paulo Freire e continua existindo. Há Elza educadora, mulher, politizada, crítica, diretora de escola, cidadã extremamente engajada nas causas sociais, tanto antes de Paulo Freire quanto depois.” (Spigolon, 2022, p. 108).


Em 1963 acontece a experiência de Angicos, com os círculos de cultura e a alfabetização de trabalhadores em 40 horas. A experiência envolveu Paulo, Elza e Madalena. De lá, Paulo Freire inicia os Círculos de Cultura do Gama em Brasília, a convite de Paulo de Tarso, Ministro da Educação. Em 2 de junho de 1963, o New York Times publica a reportagem: “Brasil realiza um movimento de alfabetização”, na qual apresenta a experiência Freiriana.


O segundo tópico abrange o período de 1965 a 1979, quando vivenciaram o exílio. Após o golpe ditatorial, inicia-se a “Diáspora Freiriana”. Primeiro com Paulo na Bolívia de onde teve que sair por causa de um golpe no país, mudando-se para o Chile junto da família, onde viveram de 1965 até início de 1969, quando foram para os EUA. 


No Chile, imagens da casa, do jardim com a roseira, o encontro dos grupos familiares de exilados: crianças, adultos, todos buscando reconstruir suas vidas interrompidas no Brasil pelas perseguições. Da convivência com as famílias de Paulo de Tarso e de Plínio de Arruda Sampaio. Lá foi publicado pela primeira vez o livro Pedagogia do Oprimido


Há uma imagem da última página do manuscrito, no item “Primeiras Palavras”, na qual pode-se ler no último parágrafo “Queremos expressar aqui o nosso agradecimento a Elza, de modo geral nossa primeira leitora, por sua compreensão e estímulos constantes ao nosso trabalho que também é seu.” Após a publicação, Paulo começou a ser denunciado, por isso aceitou o trabalho por um ano em Havard. É no frio do norte dos EUA que ele resolve deixar sua barba crescer, uma de suas marcas conforme Spigolon (2023).


Da América para a Europa, fixaram residência na Suíça de 1971 até 1979, quando aconteceu a anistia. As fotos da Suíça também marcam encontros, amizades, pessoas que foram influenciadas pelo pensamento Freiriano como Ivan Illich, em Genebra, 1971. Trazem poesia, pensamentos diversos anotados por Elza em cadernos de receita, de anotações ou em agendas. Trazem a saudade constante na correspondência com os familiares.

 
É um período de muito trabalho educativo, especialmente na África, onde mais se sentiram ‘em casa’. As experiências dialogam principalmente com países africanos que foram colônia de Portugal: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe — mas há registros na Tanzânia também. 


Parto do pressuposto de que é atribuída ao exílio uma aproximação não somente ideológica, política, pedagógica ou cultural com a África e seus movimentos de luta pela descolonização, mas também o surgimento de características de grupos que operavam na via de ações coletivas sem serem vinculados a partidos, instituições, nacionalidades ou a um território apenas. Grupos que por um lado, faziam contraponto ao imperialismo instituído, colocando-se em defesa da liberdade ou que, por outro lado, tiveram suas vidas invadidas e atingidas pelo abuso do poder ao se posicionarem de forma contrária à opressão e à violência e que se entrecruzam com a militância em terras estrangeiras. (Spigolon, 2023, p.427).


Os reconhecimentos a Paulo Freire pululam com os títulos de Doutor Honoris Causa (The Open University, Reino Unido, em 1973; Universidade de Louvain, Bélgica, em 1975; Universidade de Michigan, em 1978; Universidade de Genebra, Suíça, em 1979) e uma estátua é inaugurada em 1976, no distrito de Västertorp, Estocolmo — Suécia representando Paulo Freire junto a outros nomes do período. 


O terceiro tópico engloba o retorno de Elza e Paulo ao Brasil até o falecimento de Elza, ou seja, 1980 a 1986. “Reaprender o Brasil” era o que desejavam, quando da chegada em Viracopos (1980) constituíram residência em São Paulo (1983). Encontros e reencontros com importantes nomes da intelectualidade brasileira. Correspondência do casal. Uma homenagem a Elza Freire e Paulo Freire no recebimento do Prêmio William Rainey Harper, em Anaheim, Califórnia, no dia 20 de novembro de 1983. 


No dia 30 de agosto de 1986, Paulo, acompanhado por Elza, recebeu o título de cidadão honorário da cidade de São Paulo das mãos da vereadora Luiza Erundina. Em setembro, recebeu o Prêmio da Unesco de Educação para a Paz, na França. Elza faleceu aos 70 anos em 24 de outubro do mesmo ano. 


Por fim, o tópico que aborda o Post mortem de Elza. Em seu túmulo, Paulo Freire colocou a placa: “Quem me dera que eu pudesse passar de um tempo ao outro com a pressa e a maciez com que as nuvens andam no fundo azul do céu. Paulo 22.11.86”


Aconteceu uma Conferência em memória de Elza Freire, na Califórnia — EUA, em julho de 1987. Uma escola de Diadema foi inaugurada também em sua homenagem: EMEI “Elza Freire”. Paulo casa-se novamente. Em 24 de outubro de 1991, cinco anos após a morte de Elza,  coloca uma nova placa no túmulo da esposa: 


ELZA


Corte fundo
Dor intensa
Noite sem amanhã
Dias sem sentido
Tempo coisificado, imobilizado
Desespero, angústia, solidão
Foi preciso aceitar a tua ausência
Para que ela virasse presença
Na saudade amena que tenho de ti.
Por isso, voltei a vida
Sem te negar.        

                
Paulo 24.10.1991

 

Há charges do casal feitas por Claudius, há desenhos produzidos por Alysson Affonso em 2024, a pedido da autora. Há um universo Freiriano a ser redescoberto, repensado e refletido, um mosaico dos fragmentos biográficos de Elza e Paulo que foi artisticamente confeccionado pela pesquisadora Drª Nima Spigolon. 


E se me permitem observações mais pessoais: Há uma prática constante de afetos, amorosidades e dialogicidade que é desenvolvida no cotidiano da professora Nima, que incorpora o respeito a cada ser humano que a acompanha na jornada de troca de saberes, no exercício de aprender sempre com cada pessoa que cruza seu caminho enquanto nos ensina. 


Nima nos ensina sobre intelectualidade porque tem grande conhecimento teórico, mas ela nos educa com a sabedoria da empatia, da compreensão e da sensibilidade. Ela consegue manter sua criticidade e seu rigor acadêmico sem perder sua poesia. Tem uma alma Freiriana que pode ser sentida em seu trabalho. Entre o tecer de suas palavras ou no mosaico das imagens memoráveis que nos apresenta Nima, há a potência da luta e da resistência sem perder a delicadeza de uma flor em verso que permeia sua vida e nos presenteia com sua presença.

 

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1    O termo ‘diáspora freiriana’ foi elaborado por Nima durante suas pesquisas para contemplar os deslocamentos realizados pela família durante os anos de exílio. “A diáspora supõe uma ancoragem forte no território de instalação e uma ruptura necessária com o território de origem, o que é frequentemente compensado pelo trabalho da memória. Nestas configurações, a identidade esforça-se por ser recriada, remodelada, reconvertida para melhor produzir e se adaptar”. (Spigolon, 2023, p.402).